Em continuidade à mesa redonda realizada pelo Comus (Comitê de Usuário de Portos e Aeroportos do Estado de São Paulo) na Associação Comercial de São Paulo, no final do ano passado, usuários, operadores, armadores e representantes de associações voltaram a discutir nesta terça-feira (02) a questão da sobreestadia de contêineres, desta vez abordando causas históricas e consequências atuais da demurrage em terminais e portos.
Ao abrir o evento, Matheus Miller, secretário executivo da ABTRA (Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados) traçou um panorama histórico sobre o tempo de estadia dos contêineres, especialmente no Porto de Santos. Os números que apresentou comparavam os dados de 2009, quando a economia começou a se restabelecer depois do impacto da crise financeira global de 2008, até os dias de hoje. De acordo com Miller, um contêiner que acusava entrada na barra em 2009 esperava, em média, 23,5 dias para chegar à emissão da D.I. (Declaração de Importação), um número que hoje já foi reduzido para 13,5 dias, também em média. Matheus atribui a redução do tempo a algumas das medidas realizadas pela receita federal, no entanto disse que grande parte do esforço e do sucesso em reduzir o tempo de estadia dos contêineres nos portos e terminais é mérito exclusivo de pesados investimentos por parte do setor privado – em levantamento realizado pela própria ABTRA, calcula-se 1,5 bilhão investidos em equipamentos portuários, num período de dez anos.
Quanto a iniciativas do setor público, ele avalia que algumas foram bem-sucedidas, a exemplo do regime especial de suspensão do ICMS nas importações e o Reporto (Regime tributário para incentivo à modernização e à ampliação da estrutura portuária), que impulsionou investimentos específicos como nos trilhos da área retroportuária, enquanto outras não encontraram ainda o seu propósito final, como a iniciativa do Porto 24 horas. “O Porto 24 horas não fez bem ao sistema”, disse ele, explicando que houve perdas importantes de pessoal, na urgência de se cumprir turnos, além de desencaixe de horários de funcionamento dos prestadores de serviço, terminais e autoridades reguladoras.
Mediado pelo coordenador do CAMUS, José Cândido Senna, o debate seguiu com a apresentação do gerente executivo da ABTTC (Associação Brasileira de Terminais Retroportuários e Empresas Transportadoras de Contêineres), Wagner Cruz, que lembrou que o propósito principal das discussões seria encontrar uma maneira de reduzir a demurrage. Ainda mencionando a iniciativa do Porto 24 horas, Cruz lembrou como havia sido forte a demanda pelo funcionamento ininterrupto dos serviços portuários e retroportuários em 2013, algo que hoje já não acompanha o cenário atual de mercado em retração. “Hoje em dia, a lei já não determina mais que o estabelecimento ‘deve’ funcionar, mas sim o ‘pode’ funcionar 24 horas”, lembrou um dos participantes da mesa redonda.
Como ponto central de sua explanação, Wagner Cruz enfatizou que os terminais precisam seriamente submeter-se a uma legislação coerente e homogênea, uma vez que as instalações variam demais em estrutura e funcionamento. “Tem que ter regra”, enfatizou Cruz.
Enquanto o representante da ACTC/Sindicomis (Associação Nacional das Empresas Transitárias, Agentes de Carga Aérea, Comissárias de Despachos e Operadores Intermodais), Agnaldo Rodrigues, passou por explicações históricas sobre como surgiu o conceito de demurrage na movimentação de cargas, como se estipularam valores e prazos, lembrando que eles são hoje intrinsecamente ligados à negociações do frete, a diretora do SINDASP (Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo), Regina Terezin, levantou a forma como a morosidade está ligada à burocracia e à necessidade de negociação no sentido de “defender a carga”. “A carga não tem boca, alguém precisa defender, e é hora de o empresariado sentar para ver isso”, brincou ela. Da mesma forma, Agnaldo Rodrigues reconheceu que os parâmetros de cobrança e estipulação da demurrage se criaram em um sistema moldado pela competição, mais do que como uma forma de adaptação ou resposta ao mercado, e levantou perguntas para serem discutidas pelos integrantes da mesa: “Por que a demurrage hoje tem esse valor? Como se estabelece o free time? Qual o free time ideal para os portos brasileiros?”.
Atuante há 33 anos como despachante, Regina Terezin complementa que, apesar de o regulamento aduaneiro estabelecer que a carga deva ser desembaraçada em menos de 5 dias úteis (ou 8 corridos), ela nunca viu esse prazo ser cumprido na prática. Regina enumerou ainda uma série de agravantes que aumentam a demora para liberação de cargas, como autorizações sanitárias (em especial a nova Instrução Normativa 32, que reprova, com responsabilidade criminal, cargas em pallet de madeira e qualquer carregamento que estiver na mesma composição LCL), multas, custos e outras decorrências da peação. De acordo com ela, a questão central da demurrage é que hoje em dia ela está tão consagrada que a única flexibilidade que se tem é trabalhar as negociações, estudar contratos que determinem as responsabilidades e já prevejam custos como parte do pacote.
Na visão de Sérgio Aquino, secretário do Sopesp (Sindicato dos Operadores Portuários do Estado de São Paulo), “demurrage não é causa, é consequência” do mercado. “É como uma febre em um corpo enfermo, ela não é a doença, mas serve como alerta”, disse o secretário, que não questiona a validade da cobrança em si, mas sim a capacidade de negociação. “Somos um país fragilizado, sem força de negociação e execução”.
Um exemplo que Sérgio Aquino mencionou ilustrando falta de capacidade de negociação que enfrentamos no Brasil foi a nossa exportação de açúcar: “somos o maior país exportador e o nosso preço é definido na bolsa de Chicago”, lembrou Aquino, enfatizando que o país precisa reavaliar a sua capacidade de discussão e negociação.
Há 42 anos no mercado de café, Ronaldo Taboada, representante do Conselho de Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), fez novos elogios ao avanço da Receita Federal e às iniciativas de regulamentação da Antaq, porém classificou os valores de demurrage como “vergonhosos, quase comparáveis a rendimentos financeiros”. E ainda deixou uma dica para os importadores, que se assemelhou à ideia principal de Wagner Cruz, em busca do fortalecimento da legislação: “É hora de vocês procurarem os ministérios e sindicatos para deixarmos de viver o que hoje é o terror dos ajustes”, referindo-se a legislações inconstantes e tarifas heterogêneas, que variam conforme o horário, o volume, o turno.
Rodrigo Marchioli, advogado especialista em Mediação e Arbitragem pela FGV, acrescentou ainda que, do ponto de vista jurídico, há um ponto a se trabalhar na situação da demurrage, que é a transparência: “sem entrar no mérito de ser ou não devida, juridicamente, a cobrança da demurrage é de natureza indenizatória e, portanto, requer demonstração do prejuízo, uma questão de responsabilidades: como se chegou aos valores praticados”. Marchioli ainda enfatizou tópicos que já tinha apresentado na reunião anterior, como as vantagens de se utilizar câmaras de arbitragem para a solução de contenciosos envolvendo cargas, armadores, embarcadores, agentes e instalações portuárias, e a discrepância do tempo de prescrição de ações ligadas à sobreestadia de cargas nos portos, hoje estipulada em 5 a 10 anos, quando o próprio código civil vem trabalhando para diminuir esses prazos.
Já de saída, um dos participantes lembrou, em conversa informal com jornalistas, que, embora a responsabilidade pelo demurrage recaia sempre sobre os armadores por serem os beneficiados das taxas, o interesse maior do navio é meramente recuperar os seus contêineres vazios e deixar o porto – e não capitalizar sobre a demora, seja lá por qual for o motivo.
A Associação Comercial fica na Rua Boa Vista, 51, São Paulo – SP, e a programação de palestras pode ser encontrada no site da ACSP.
Fonte: Guia Marítimo – Cleci Leão